Amazônia: do mito da floresta homogênea à realidade de um território diverso
Quando somos convidados a pensar sobre Amazônia, o que vem inicialmente em nossa mente? Um lugar heterogêneo e de forte dinâmica social, além das questões ambientais? Ou um espaço territorial homogêneo, inabitado por seres humanos, um local cuja exclusiva funcionalidade é a exploração de recursos? Mais ainda, um lugar que é tratado como agenda nacional, pois envolve interesses que tocam a questões econômica (desde a produção de insumos industriais até a sustentação do PIB pela via da exportação), ambiental (ex. a rotina pluvial de grande parte das áreas do Brasil são influenciados pela Amazônia), territorial (a área da Amazônia legal, como se vê na Figura 1, é de 5,2 milhões de km² enquanto que a do Brasil é de 8,5 milhões de km², o que representa 61% da área brasileira), dentre outros? Ou apenas como uma agenda regional, dada suas particularidades e seu pretenso descolamento com a dinâmica nacional?
Figura 1: Mapa político da Amazônia Legal
Discutir sobre estes dois dilemas (A. espaço territorial homogêneo X heterogêneo; B. questão exclusivamente regional X questão nacional e regional) está no centro da reflexão aqui proposta. Para tanto, é necessário captar as narrativas consolidadas, sobretudo aquelas que mais irradiam.
A descrição sobre “Amazônia” no sítio eletrônico do Ministério do Meio Ambiente reflete bastante como pensa a média dos brasileiros que não vivem na Amazônia. Neste caso, como uma localidade “quase mítica: um verde e vasto mundo de águas e florestas, onde as copas de árvores imensas escondem o úmido nascimento, reprodução e morte de mais de um-terço das espécies que vivem sobre a Terra”. Destaca-se aqui a homogeneidade territorial, biogeográfica e ecológica, assim como o desprovimento de ação antrópica na promoção de diversidade.
Deste modo, tem-se a impressão de que Amazônia é uma unidade geográfica, com sistema biótico e abiótico uniforme e equilibrado, constantemente ameaçada pelo movimento desenfreado da fronteira econômica nacional (logo, exógena).
Parece que todos os esforços de integração nacional, sobretudo neste último período com o processo de globalização comercial e financeira, lidaram sempre com uma dinâmica social e econômica passiva, cujas respostas eram dadas de modo homogêneas. Esta narrativa cristaliza uma interpretação que distorce de modo significativo a dinâmica da localidade.
Primeiro que, do ponto de vista do ecossistema, há uma grande diversidade, coexistindo desde floresta ombrófila, com altas intensidades pluviométricas (que é a imagem mais comum sobre a Amazônia, árvores gigantes e com muita densidade), ou com intensidades mais brandas, florestas estacionais, com longos períodos de estiagem (comum no Mato Grosso), vegetação campestre, podendo ser mais ou menos adensada, com inundações periódicas em certas regiões, além das áreas de tensão ecológica.
Segundo que, do ponto de vista da dinâmica socioespacial, há uma configuração consolidada, mas, como em qualquer dinâmica antrópica, em constante movimento. Há uma hegemonia local, conformado por setores econômicos diversos, que se confrontam com populações tradicionais, desde camponeses e ribeirinhos até quilombolas e indígenas (diga-se de passagem, 55% dos povos indígenas brasileiros vivem na Amazônia Legal).
Esta dinâmica, como aponta do professor Danilo Araújo, em sua tese de doutoramento, lida com contradições que se expressam a partir de diversos conflitos, ora latente ora patente, como a luta pela posse e uso da terra; o direito e apropriação dos recursos naturais, em especial o minério, a água e a madeira; o controle sobre o sistema de crédito produtivo, que se expressa nas carteiras do Fundo Constitucional do Norte (FNO), usado, em tese, para financiar empreendimentos de pequeno e médio porte, e Fundo de Desenvolvimento da Amazônia (FDA), que sustenta empreitadas de grande porte e de infraestrutura; a disputa territorial entre diferentes padrões tecnológicos de base agrária; dentre outras.
Estes conflitos, que parecem inicialmente independentes e desconectados, constituem-se, na verdade, como partícipes mais visíveis de um sistema em operação, cuja lógica se institucionaliza a partir de elos de interesses diversos (locais, nacionais e globais), que ora se harmonizam e ora se conflitam. A Amazônia é, assim, a materialização deste ambiente ecológico e institucional, configurando-se enquanto síntese de uma diversidade e heterogeneidade territorial.
Outra narrativa forte é que a Amazônia é desintegrada com o resto do país, do ponto de vista logístico, econômico e, até, cultural. Há um sentimento de que a Amazônia é um território descolado do Brasil e que vive apartado da dinâmica nacional. Ou seja, o território que corresponde a 61% do nacional está desconectado. Mas cabe perguntar, de que integração está se referindo? Uma que potencializa o caminho de desenvolvimento traçado pela nação?
Se a resposta for “sim”, cabe uma problematização. O Brasil é uma economia destacada por sua produção para o consumo externo e de bens de baixo valor agregado. Em 2018, 65% de sua pauta de exportação foi formada por insumos a indústrias pesadas (minério de ferro, cobre, alumina, petróleo e derivados, etc) e a alimentícia (soja, carne, milho, algodão, frutas in natura, etc). Desde os anos 1997 que estes itens têm participação significativa (em 1997 foi de 55%).
Ao observar estes insumos industriais desagregados, percebe-se que o top 3 na pauta de exportação é soja, minério de ferro (até o Crime em Mariana, estava em 2º lugar) e petróleo cru (passou para 2º lugar após 2015). O carro-chefe da exportação (soja) é sustentado pelo Mato Grosso, que em 2018 foi responsável por 30% e até os anos 1990 não chegava a 20%. Minério de Ferro, outro item imprescindível na pauta de exportação e no padrão de desenvolvimento do Brasil, tem no Pará sua participação mais significativa. 55% deste minério exportado é produzido no Pará. Mais da metade do milho e 1/4 da carne exportados são produzidos no Mato Grosso, o que até a década de 1990 era uma parcela irrelevante.
Diante desses dados, é possível afirmar que a Amazônia Legal está desconectada do Brasil? Obviamente que não. Há outro questionamento: é possível sustentar este modelo de desenvolvimento primário-exportador sem uma Amazônia conectada? É inegável a integração da Amazônia com o Brasil, ao contrário do que pensa o senso comum, e por isto debater Amazônia é necessariamente debater Brasil.
A querela atualmente travada, sobretudo a partir deste atual governo obscurantista e anti-ambientalista, deixou ainda mais evidente os problemas que passa a Amazônia. Mas o que aqui se salienta é que não são problemas exclusivos da Amazônia, mas sim do modelo de desenvolvimento em curso no país. Não há execução deste modelo sem uma Amazônia integrada e por isto que discutir Amazônia não deveria implicar uma questão regional em exclusivo, mas sim uma questão nacional, de modelo de desenvolvimento.
Se o objetivo for preservar uma Amazônia mítica, há de se informar que ela não existe e nunca existiu. Ela sempre foi palco de uma dinâmica antrópica e social intensas e, nestas últimas décadas, conformando classes dominantes locais interessadas na sustentação deste modelo que saqueia as riquezas.
Não há defesa sincera e franca da Amazônia sem questionar este modelo de desenvolvimento em curso. Não há como preservar o bioma Amazônia e o bem viver das populações originárias mantendo uma lógica econômica erigida na necessidade de manutenção da atual pauta de exportação. Ou se trata a Amazônia enquanto uma questão nacional, entendendo sua diversidade e especificidades, ou ela nunca será tratada de modo adequado.
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